sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A FABRICANTE DE POEMAS!

Bebe fácil na taça de poesia alheia para imprimir as suas


Quando na época de seu primeiro disco, "Enguiço", em meio a tantas interpretações num repertório diversificado e versátil, lááá na penúltima música encontrava-se uma composição sua, "Mortaes". Seria leviano negar que este foi o primeiro grande impulso pra que passasse de intérprete de talento a compositora conceituada e poetisa de mão cheia e renomada. Já no álbum "Senhas", assina nove das treze letras, firmando-se como uma das melhores compositoras femininas que este país já teve e não parou mais - seus trabalhos posteriores vieram recheados de composiçõess suas.
Eu costumo dizer que Adriana é uma romântica-moderna - tem a linha "cool" de expressão, mas o conteúdo é aquele de menina que poetiza o próprio diário confessional - que compartilha suas dúvidas e receios como uma Anne Frank faria. Não apenas o seu eu-lírico é retratado - as impressões fragmentadas sobre fatos da vida, pessoas, movimentos culturais, homenagens a expoentes importantes...tudo é feito na mesma maestria. Alguns a chamariam de pós moderna, diante sua indefinida classificação diante de uma infinidade de características aparentemente dissociadas entre si. Mas seria apenas um rótulo - Adriana só queria cantar e difundir sua arte. Ela tinha consciência que seu papel na música ia muito além e não deveu nada na condução dele...
Além da consolidada carreira musical, Adriana se tornou conhecida por conseguir, em poesia (a escrita mesmo), expressar tudo o que sente. É uma forma adicional de manifestação cultural que esta grande mulher encontrou também de compartilhar seus medos, angústias, alegrias e aleluias. Não tenham dúvidas que a relação com a filha de Vinicius de Moraes lapidou esse dom - a modernista deveria ser citada constantemente nos livros de literatura do colégio, pois consegue manter acesa a chama dos poemas e poesias, que parecia tanto estar desvalorizada nessa constante falta de alma nos trabalhos contemporâneos...
Parceiros? Inúmeros...cada um representando uma faceta da versátil cantora. Waly Salomão poderia ser enquadrado como o máximo expoente romântico...Arnaldo Antunes o inverso - e nesse bojo ainda encontramos Caetano Veloso, Vinicius de Moraes, Antonio Cícero, Pérciles Calvalcante, Mario de Sá-Carneiro, Jacques Prévert, Gertrude Stein...também, pra fugir um pouco da poesia (ou não), podemos elencar outras grandes parcerias de Adriana como a com Maria Bethânia - ela não se cansa de dizer que o disco "Enguiço" é inteiramente dedicado a ela, dentre outros tantos. Basta uma afinidade pra justificar a parceria...
A poesia de Adriana também se reflete no estudo da música brasileira. Há como não ouvir o disco "Marítimo" (1998) e não achar que o mesmo poderia pertencer tranquilamente à fase mais áurea da Tropicália? Como diz meu amigo Márcio Nicolau, ela é o próprio Caetano Veloso de saias!
Que feliz constatar que ainda existem poetas vivos na música popular brasileira. Que no desenfreado capitalismo que impera, não vendem sua ideia ou alma. E que bom que temos Adriana até hoje, no meio desses ares todos, pra nos salvar!


"Mas que sensibilidade é esta? Como nomeá-la sem trair o desejo da própria autora, que sonha fazer uma música que seja somente música, um som apenas som, sem compromisso com qualquer finalidade anterior à busca da expressão artística e que, portanto, seja extrínseca à obra de arte considerada em sua autonomia? Essa recusa parece revelar uma sensibilidade que muitos nomeiam como pós-moderna, mas isso também é muito discutível. Conforme expõe Antonio Cícero, que considera uma bobagem falar-se em “pós-moderno”, a atitude de rejeição ao comportamento das vanguardas, que tanto caracterizaram a modernidade, não significa uma recusa do projeto moderno, mas um amadurecimento do mesmo, que passa a aproveitar todas as possibilidades combinatórias de experiências que se acumularam por séculos e séculos de história. Em vez de nos aprisionarmos em rígidas plataformas poéticas, devemos devorar tudo, antropofagicamente, conforme propõe Adriana. Por isso, assim como ela, proponho a todos que passemos a comer Caetano, Cícero, Cavalcanti, Antunes, Stones e quem mais de bom seja servido à nossa mesa ou rádio."

Marciano Lopez, sobre a obra de Adriana Calcanhotto, para a revista "Outras Palavras".





**************************

UNS VERSOS
Adriana Calcanhotto

Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo

Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro,
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco

Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo



TH - Lírica e majestosa...



5 comentários:

  1. Adriana é transcendental...
    Melhor classificação que existe!

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  2. "firmando-se como uma das melhores compositoras femininas que este país já teve"

    Ah,TH, admiro sua coragem em afirmar isso da Adriana Calcanhotto, que é uma artista muito incompreendida pelo grande público. Muitos torcem o nariz só de ouvir o nome dela "por causa daquela vozinha chata". Enfim, Estética é a ciência dos 5 sentidos e não sou autoridade pra julgar de anta ou de asno quem se recusa a escutar as verdades intrínsecas, uterinas, daimônicas, das estranhas. Pensar vem das estranhas, vem do que nos incomoda e nos faz pensar.

    Adriana é muito profunda, ela vai no cerne da questão, ela é atrevida, ela se joga na experiência afetiva. Ela vive sua afetividade na sua plenitude.

    Adriana não é tão ressentida como a apaixonada Marina Lima, que teve muitas desilusões. Ela teve um experiência séria com Maria Bethãnia, e o resultado é o lindissimo "Âmbar" (1996). Vale lembrar que esse CD lanço a faixa título como tema de locação na minissérie "Labirinto (1998) e como tema do caso extraconjugal do fazendeiro Pedro Afonso (Cláudio Marzo) e a prostituta cafetina Zenilda (Renata Sorrah) em "A Indomada" (1997)

    No belíssimo CD Âmbar, de Maria Bethânia, duas são as faixas escritas por Adriana Calcanhotto, sua namorada na época. Ela revela na letra:

    "Que banhasse a Lagoa até São Conrado e ganhasse as Canoas, aqui do outro lado".

    A Lagoa Rodrigo de Freitas, área nobre do Rio, fica dividida de São Conrado pela gigantesca favela da Rocinha, mas Bethânia mora lá no outro extremo do bairro de São Conrado: A Estrada das Canoas, lá onde o povo pula de asa delta nas novelas cariocas ("O Sexo dos Anjos", "Dancin' Days", "Mulheres Apaixonadas"...) O amor de Adriana toma a Lagoa, que beira o Jardim Botânico, onde ela mora, e sobe, dourado como o âmbar, até a casa de Bethânia.

    "Uns Versos" é maravilhosa, mas é outra energia. É a hora de aprendermos com Adriana sobre como lidar com o resentimento e a aceitá-lo("Escrevo uns versos, depois rasgo").
    Como ainda temos quase 10 dias pro mês acabar, a gente fala desse aspecto um tanto mórbido mas muito cínico e mesmo venoso, maquiado e disfarçado, como Adriana trata das suas relações fracassadas. Sou expert nisso: na Adriana e nas relações fracassadas. Espero que gostem do meu futuro texto sobre uma música selecionada de seu álbum " A Fábrica do Poema" (1995), citado pelo TH no texto. Muita coisa pra falar...

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  3. THiago

    Confesso (nada demais, nenhum pecado rasgado): tenho um lado passional e me rasgo inteiro quando ouço Uns versos como estes da Adriana.

    Depois de ter você Cantada pela Bethânia também me encanta.

    Obrigado por mencionar o amigo aqui em seu ótimo texto.

    Um abraço

    Com saudades,

    Marcio.

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