terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ARTISTA DO MÊS: ADRIANA CALCANHOTTO

A desenguiçada fábrica de poemas cantados em público. Partim-ciplem! Peguem suas senhas pois a maré tá alta!


A tão antiga cumplicidade entre música e literatura...
A teoria musical de qualidade é o trinômio de "ias": melodia, harmonia e poesia. Tem artista que vai aquém e esquece sorrateiramente algum dos elementos. Outros sobrecarregam uns em desfavor de outros e assim se faz a música brasileira: sem fórmula certa, mas que de alguma forma dá certo.
Não sei como enquadrar Adriana Calcanhotto nesse parâmetro: sequer sei se há parâmetro. Sua obra é tão vasta e polivalente que não se consegue situar em qualquer categoria estreita ou pré-determinada. Arrisco dizer que seu trabalho é como a sexualidade de qualquer pessoa: desnecessita de rótulos ou denominações. Estudar sua carreira é constatar que ela é pop, cult, juvenil, adulta, poética, alegre, melancólica, eletrônica, voz-e-violão... um jogo infinito de paradoxos reinventados a cada fase. Não é de se estranhar que obtem fãs de extremidades igualmente opostas: dos humildes aos mais elitizados, todos se deleitam ao sabor de Drica.
Por excelência uma das mais admiradas cantoras dentre os leitores do EnTHulho Musical, estava mais do que na hora dela ganhar um mês inteirinho dedicado a seus discos, músicas, fatos, curiosidades, erros, acertos e tudo o mais. Tem pano demais pra manga e muito o que se discorrer sobre essa poetisa do Rio Grande do Sul, mas com genialidade de descrever com propriedade a cena carioca (onde morou) e a capacidade de usar e abusar de sua visão sobre o que há a seu redor - sejam as pessoas (cariocas são bonitos...cariocas são ousados), sejam abstrações ("não sei bem onde larguei o leão que sempre cavalguei"), ou homenagens ousadas (vamos comer Caetano...comê-lo cru).


Navegar a marítima trajetória de Adriana é ter uma aula completa de literatura. É perceber as influências diretas (Caetano Veloso, Lupicínio Rodrigues, Augusto de Campos, Gerture Stein, dentre tantos outros), condensadas em melodias deliciosas e letras que te traduzem e possuem uma atomosfera rítimica que te dão a sensação de viajar. Embarquemos já, pois!



Desde seu nascimento, em 03 de outubro de 1965, Adriana Calcanhotto ouve música de qualidade. Seu pai era baterista de uma banda de jazz e bossa nova, e sua mãe, bailarina. O repertório de músicas ouvidas em sua infância era banhado de Astor Piazzola a Miles Davis e João Gilberto. Ao iniciar seus estudos de música em 1977, teve como influência de seu professor os músicos Tom Jobim e João Donato. Além da música, Adriana é uma assídua leitora de publicações sobre Modernismo no Brasil e em algumas fases da sua vida chegou a largar a música para atuar como ‘performer’ em peças teatrais e se dedicar à composição.
Foi em Porto Alegre, no ano de 1984, que Adriana Calcanhotto iniciou sua carreira profissional de cantora, tocando e cantando em casas noturnas e bares da cidade. Seu show de estréia teve o nome de “Crepom”, com direção de Luciano Alabarse. Sempre eclética, a cantora estreou em 1987 o show “Nunca Fui Santa”, com composições próprias e músicas de carnaval.
Participou, em Porto Alegre e em São Paulo, de espetáculos em homenagem à Elis Regina e em 1988 estreou o show “Batom”, que na época teve recorde de público. A partir daí, Adriana ganhou projeção nacional, após fazer sucesso com o espetáculo dos melhores momentos de todos os shows já apresentados.
Depois do sucesso, a cantora assinou com a CBS e gravou o seu primeiro disco, chamado “Enguiço”, que renderia o prêmio de “Revelação Feminina”, no 4º Prêmio Sharp de Música, além de controvérsias entre os críticos da época, que dividiram suas opiniões sobre seu verdadeiro talento. Esse primeiro disco homenageia clássicos da MPB (Lupicínio Rodrigues, Titãs, Caetano) e tem uma faixa de sua autoria: Mortaes. A música "Naquela Estação" integra a trilha da novela "Rainha da Sucata", de 1990.

Mais autoral, em 1992 lança seu segundo trabalho, "Senhas". Intimista e confessional, o álbum lhe deu mais projeção ainda, embalado pela música “Mentiras” entrou na trilha sonora da novela “Renascer”, da TV Globo, e estourou em todas as rádios do país, e também com "Esquadros", uma das mais admiradas pelos fãs da moça. Esse disco abriu as portas para que Adriana fizesse shows em grandes casas de espetáculos, como o Canecão, no Rio de Janeiro, e rendeu ainda o primeiro disco de ouro da intérprete.

Em 1994, começa a sentir sinais de cansaço e desgaste devido à exposição excessiva na mídia. Era necessário fazer algo - por isso, nesse mesmo ano, lançou o LP "A Fábrica do Poema", com algumas doses de experimentalismo (poemas de Augusto de Campos, Gertrude Stein, textos do cineasta Joaquim Pedro de Andrade e parcerias com Waly Salomão, Arnaldo Antunes, Antônio Cícero e Jorge Salomão. Foi o último a ter versão em vinil, os destaques foram "Metade" (da novela "Quatro por Quatro" e "Inverno". (COMENTÁRIO DE TH: Meu preferido e o eleito pra ilustrar o cabeçalho do EnTHulho esse mês).

Já em 1998, começa a inacabada trilogia com temática "mar", com o genial "Marítimo". O nome remete à faixa que canta com Dorival Caymmi, "Quem Vem Pra Beira do Mar", mas o disco tem muito mais! Adriana flerta com eletrônica e samplers bem modernos, e um filão de letras muito bem trabalhadas. Destaque para o sucesso "Vambora" e a versão remixada de uma música de seu álbum anterior, "Cariocas".

Uma das participações foi uma performance na livraria Argumento, no Rio de Janeiro, musicando poemas do poeta português Mário de Sá Carneiro em 1996. Um deles, "O outro" acabou por entrar no CD Público (2000), que trazia regravações dos antigos sucessos entre outras canções consagradas e também rendeu um DVD, lançado no ano seguinte pela gravadora BMG. Falando do disco, era necessário um registro ao vivo - e o "Público' mostra, pra quem já foi a um show de Mme. Calcanhotto, tudo o que ela é no palco - os improvisos estudados, as baladas alçucaradas, as ousadias cantadas...o disco ainda traz geniais versões de estúdio. No mesmo ano, grava "Devolva-me",que integra a trilha da novela "Laços de Família" e faz um enorme sucesso.
O disco "Cantada", de 2002, ironicamente é um dos menos citados em sua carreira, mas não deixa nada a dever em termos de genialidade e ousadia. Hits timidos como a faixa título, "Pelos Ares", "Justo Agora" (linda!) e sua versão porra-louca pra "Music" marcam o trabalho.

Em 2004 dá uma grande guinada na sua carreira: permite-se fazer um disco de MPB infantil, intitulado "Partimpim", sobrenome que chega a adotar. O projeto é bastante criticado por alguns fãs da moça, e elogiado por outros tantos pela iniciativa de impor algo de respeito aos pequenos. Repercutiu tanto que ganhou uma continuação, o Partimpim 2, em 2009. Antes disso, lança o disco "Maré", mais um da trilogia marítima e que reúne músicas da chamada "nova MPB". Três músicas estiveram nas trilhas de novelas da Rede Globo: Mulher Sem Razão (Composição: Dé Palmeira e Bebel Gilberto - Letra: Cazuza), em A Favorita; Três (Composição: Marina Lima/Antônio Cícero), em Ciranda de Pedra; e Um Dia Desses (Música: Kassin- Letra: Torquato Neto), em Três Irmãs. Nesse mesmo ano, Adriana aventurou-se pela primeira vez no texto em prosa e lançou o livro Saga Lusa, no qual relata o "surto" que teve durante uma viagem à Lisboa. Muito divertido e rico, por sinal!

Homossexual assumida, Adriana Calcanhoto é companheira da cineasta Suzana de Moraes, filha do poeta e compositor Vinícius de Moraes. A relação de ambas já durava há decadas, e em 2010, diversos meios de comunicação, tanto brasileiros como portugueses, noticiaram sua oficialização.










Drica: sorrindo por uma carreira (e vida) "Mais Feliz"



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REMIX SÉCULO XX
Composição: Adriana Calcanhoto / Waly Salomão

Armar um tabuleiro de palavras-souvenirs.
Apanhe e leve algumas palavras como souvenirs.
Faça você mesmo seu microtabuleiro enquanto jogo linguístico.

Babilaque
Pop
Chinfra
Tropicália
Parangolé
Beatnick
Vietcong
Bolchevique
Technicolor
Biquíni
Pagode
Axé
Mambo
Rádio
Cibernética

Celular
Automóvel
Buceta
Favela
Lisérgico
Maconha
Ninfeta
Megafone
Microfone
Clone
Sonar
Sputinik
Dada

Sagarana
Estéreo
Subdesenvolvimento
Existencialismo
Fórmica
Arroba
Antivirus
Motosserra
Mega, sena

Cubofuturismo
Biopirataria
Dodecafônico
Polifônico
Naviloca
Polivox,
Polivox,
Polivox,
Polivox...


TH - Jogo certeiro da artista certa!



12 comentários:

  1. Que texto sensível, cara!

    Você conseguiu captar a essência da Adriana. E eu não me refiro só a pessoa, a artista também. Ela é tão intensa, tão plural, imagino o trabalho árduo que você teve. Porque por mais que a gente estude a personalidade dela, fica impossível formular uma só opinião. A Adriana é controversa, surpreendente, única!

    Sou fã inveterado do trabalho dela. E lamento muitíssimo a sua opção sexual. Uma mulher incrível dessas, que desperdício! (rs). Mas sabe que "Inverno" também é a minha música preferida? Faz parte da minha vida. Escuto em diferentes momentos (de alegria, de tristeza) e sempre se encaixa. Taí mais uma prova da pluralidade da moça.

    Os álbuns são um show a parte! Gosto muito do início da carreira, "Senhas" e "A Fábrica do Poema". Ambos têm canções lindíssimas, algumas que nem tiveram tanta projeção, como: "Estrelas", "Portrait Of Gertrude", "Tema de Alice" e "Água Perrier".

    Mas não tem jeito. O meu álbum preferido para todo o sempre é o "Cantada". Ali, vejo uma Adriana mais madura musicalmente, sabendo dosar os elementos que a levaram ao sucesso (a delicadeza, um certo lirismo) à uma certa ousadia na escolha do repertório. Destaque para "Justo Agora", "Se Tudo Pode Acontecer" e "Ninar", que eu vejo como uma espécie de prenúncio do ótimo "Partimpim".

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  2. Eu adorei esse texto! Seu talento para falar de música vem se lapidando a cada dia e é muito bom ver quem entende falando tão segura e sensivelmente sobre o assunto! Orgulho total.
    Gosto demais da Adriana! Mas meu gostar não é técnico e, justamente por isso, quase tudo (além das canções!) que você contou sobre ela me era inédito.
    Aprender assim, de forma tão gostosa, é um prazer enorme!
    Calcanhotto é um talento enorme da nossa música!
    Gosto tanto que é dela um dos meus hinos: "Esquadros" - talvez eu siga sua sugestão e escreva mesmo sobre ela para uma segunda participação no seu quadro de Amigos Musicais.
    Que mais dizer?
    Que te admiro muito?
    Vá lá. Que seja!
    Mas fico devendo no quesito originalidade, então.
    Grande abraço!

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  3. Quanto conteúdo!
    Detalhes que não conhecia sobre a cantora, fotos maravilhosas e muita história.

    Identifico-me muito com a música "Senhas". Dá muito pano pra manga, apenas a letra. Quanto conteúdo não seria possível arrancar dessa obra de Calcanhotto?

    Abraços,
    seuanonimo.blogspot.com

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  4. THiago,

    Que texto magnífico! Também admiro a Calcanhoto. Que beleza de trabalho o seu.

    Abraço

    António

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  5. Adoro a Adriana, TH! Adorei saber que ela se casou com outra mulher. Determinada demais.

    Mentiras é minha preferida, apesar de odiar mentir! hehaha

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  6. Obrigado, queridos!

    Sempre vai ser dificil falar de Adriana, pois soará incompletp. Mas eu estou empolgado que ela seja mesmo a artista desse mês aqui no blog.
    Adoro sua obra e é uma de minhas cantoras preferidas!

    Seus comentários são combustiveis a mais pra estimular as novas postagens do EnTHulho

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  7. THiago
    Você está cada vez melhor. Digo isto de coração, não é vazio o elogio.
    Primeiro preciso agradecer o comentário que deixou na penúltima postagem do InterTextual. Achei tão lúcida a tua fala que, ao debater com uma amiga, escrevi o seguinte (divido com você a reflexão):
    Quando escrevi o texto, esperava reações exaltadas. Quando escolhi o vídeo, eu esperava incomodar.
    Um dos leitores disse "espelhos incomodam" e eu concordo. Cada um refletiu um pouco e por isso também todos buscaram contemporizar.
    Certamente quem leu, mesmo quem evitou comentar, pensou a respeito. O objetivo era fazer pensar.
    E o mesmo eu penso do vídeo. O Ziraldo em momento algum me pareceu negar a Internet. Ele começa falando sobre a curiosidade, ressalta a busca pelo conhecimento, diz que os sites de busca são facilitadores e até afirma que a Internet, se existisse durante o regime militar, seria um instrumento para a contestação. O Ziraldo, diga-se de passagem, viveu a ditadura. A fala dele, aliás, é extremamente pertinente. No ano passado, a censura ao Nobel na China e agora o veto aos protestos no Egito mostram o quanto a Internet pode ser um instrumento e o quanto ele pode ser estratégico.
    E não acho que ele tenha a mídia em suas mãos. Quem manipula a informação são os comunicadores, é a Imprensa, são os apresentadores de TV. O Ziraldo é um escritor respeitado e uma personalidade. Gosto de ele ter personalidade, mesmo correndo o risco de estar errado.
    E é porque acredito muito nas palavras que não diria que é fácil usá-las, que "é fácil falar". Porque cada vez se fala menos, embora pareça o contrário (e alguém precisa dizer isto). No Twitter são contados os caracteres e é só bla bla bla. Todo mundo fala, fala e não fala nada.
    As redes sociais estão sendo desperdiçadas e não é demagogia apontar isso e usá-las. Demagogia é, como eu disse, o que tenho visto, todo mundo "fazendo a social" e evitando mostrar a cara.
    Crescem as listas de amigos, mais isso é falso. Precisamos evitar a falsidade.
    Nesse sentido é que o Ziraldo acerta ao dizer que é "todo mundo babaca", porque estão todos se enganando. Forjando relacionamentos e reproduzindo ambientes falsos num âmbito virtual.
    Pra mim afetos e desafetos são sempre reais.
    E é bom dizer: hoje há a exclusão virtual, há muita gente que não teve acesso a revolução. Sem falar que os analfabetos funcionais agora estão em rede. Então que revolução é essa se os parâmetros são os mesmos anteriores?
    Não só há ameaças na web, não só há coisas que precisam ser revistas. Há muita coisa que ninguém vê. Há muitos que se julgam invisíveis e não existem nem pra si porque inventam identidades e se, não estão online, não estão conectados ao mundo.
    Mas a idiotice é original. A Internet não é responsável por isso, pois esta é também uma condição.
    Na mídia há muita Idade Média e é por isso que não podemos ser ingênuos e acreditar somente no Renascimento das Artes e negar a caça às bruxas. As fogueiras estão acesas, incluída a das vaidades. Quem não concorda com tudo é condenado, pratica-se a queima de arquivo. Discordou, é deletado. Os círculos estão fechados.
    Porque há muita unanimidade é que eu quero cada vez mais promover o debate.
    Pertenço a uma geração que acompanhou o esvaziamento das discussões. E paradoxalmente viu surgir a Internet, repleta de conteúdo.
    O mundo está girando cada vez mais veloz e eu também vivo as revoluções por minuto. Não nego o progresso, estou a mil. Mas quero o pé no freio também e o olhar retrô.

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  8. E quando entro aqui olho no retrovisor, THiago, vejo Adriana Calcanhotto que chamo, como muitos também o fazem, de "o Caetano de saias", por sua inclassificável obra que mistura música e poesia.
    Lembro do disco "Senhas", o último vinil que tive em mãos e o primeiro disco da minha vida, o primeiro pelo qual me apaixonei. Desde então "eu ando pelo mundo prestando atenção"
    E "de lá pra cá nem sei, caminho ao longo do canal, escrevo longas cartas pra ninguém"
    Mas ainda "cavalgo o meu leão", THiago. Sinto eco na Adriana Calcanhotto, ela me traduz com seus versos cortantes, sua voz contida e as performances ousadas que provocam os caretas.
    Você acertou em cheio ao associá-la aos Modernistas. Você é dez, cara.
    Um abraço e estou acompanhando tudo, saiba.

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  9. Tenho o CD Perfil da Adriana Calcanhoto. Quando eu o comprei, há alguns anos atrás, quase que o furei de tanto ouvir... rsrsrsrs
    A voz e as letras de Adriana são maravilhosas.
    Isso só prova, mais uma vez, que vc é um garoto de excelente gosto musical.
    Um beijo! Bom domingo!

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  10. Muito feliz por ver Adriana como artista do mês!
    Adoro o trabalho dela!
    O CD A Fábrica do Poema é o que mais gosto.
    Adriana parece ser o tipo de artista que produz seus cds como quem faz uma obra de arte, com a mesma determinação, paciência e exigência de um pintor para que seu trabalho fique impecável, irretocável. O resultado nao poderia ser diferente.

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