sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

UM DISCURSO SESSENTISTA QUE É ATUALÍSSIMO

Divina e maravilhosa



O ano era 1968. Caetano Veloso, expoente-mor da Tropicália, brigava com o público no III Festival da Canção. A reação da plateia ao seu "É Proibido Proibir" não foi das melhores, e a revolta do baiano foi justamente por não visualizar sua mensagem recebida. Os urros e vaias dos ouvintes impediam que o discurso anti-censura de Caetano fosse concebido como objeto de protesto naqueles anos de chumbo.
A música brasileira decididamente não era mais a mesma - além da leveza da Bossa Nova e todo o movimento da Jovem Guarda, as poesias reacionárias do movimento tropicalista causaram desde então um ruído poderoso. Os seus representantes - Gil, Caetano, Bethânia, Tom Zé, Mutantes foram endeusados e amaldiçoados ao mesmo tempo, e chegava a ser constante a quantidade de vaias e aplausos que paradoxalmente obtiam em suas manifestações artísticas.
No mesmo 68, contudo, outra música de Caetano, dessa vez composta em parceria com Gilberto Gil, conseguiu imprimir um outro discurso, que, a despeito de ter sido no calor do auge da Tropicália, ainda se faz oportuno a cada audição, nos dias de hoje. "Divino Maravilhoso" coroou o lançamento do disco de maior manifesto dos Tropicalistas, o "Tropicália ou Panis Et Circenses", no mesmo ano, com participações de Nara Leão, Gal Costa e dos Mutantes. Gal já vinha construindo sua imagem de boa moça que cantava bossa sentada num banquinho - Caetano lhe ofereceu a canção e perguntou como ela queria cantá-la: "de uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira'. Gil se comprometeu a fazer um arranjo à altura e a moça foi projetada para todo o Brasil em Novembro do mesmo ano, ao interpretá-la no Festival da Música Brasileira, da TV Record. Causou uma estranheza inicial no público - Gal estava incrível - agressiva e cantando de forma quase irreconhecível, caprichando nos agudos e explorando sem limites toda potencialidade de sua voz. Também houve uma ruptura total de sua imagem bem comportada: polemizou com cabelo black power e colares bufantes, numa atmosfera completamente hippie. Aos poucos, suavizado pelo primeiro impacto - o público relaxou e começou a aplaudir a grandiosidade da apresentação. A mensagem era, finalmente, transmitida e entendida - atenção para o palavrão, para a palavra de ordem - tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso. O jogo de paradoxos se fez oportuno e eternizou uma das melhores músicas já produzidas na música popular brasileira. E o referido episódio mostra que a maneira de se c(a)ontar é tão importante quando o conteúdo...

Discurso atual e, feliz ou infelizmente, cada vez mais verdadeiro...

Obs.: "Divino, Maravilhoso" também deu nome a um programa vanguardista que surgiu na TV Tupi e era comandado por Caetano e Gil, e tinha participação de Jorge Ben, Mutantes e da própria Gal, dentre outros. Logo abaixo, vídeo da polêmica e ovacionada apresentação na Record.



Cenas das apresentações tropicalistas: grande marco na história da MPB




***********************************
DIVINO, MARAVILHOSO
Caetano Veloso / Gilberto Gil
Interpretação: Gal Costa


Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para a estrofe e pro refrão
Pro palavrão, para a palavra de ordem
Atenção para o samba exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para as janelas no alto
Atenção ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção para o sangue sobre o chão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte



TH - Mais uma música-meta pra 2011!




18 comentários:

  1. Quando paro para escutar, ler ou pensar sobre a arte produzida nesses anos de chumbo, me pergunto se não seria necessária uma certa dose de repressão para estimular o nascimento de obras realmente significativas. Parece loucura, mas o fato é que depois da conquista da liberdade total, a MPB nunca mais teve a mesma força...

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    1. CONCORDO PLENAMENTE COM VC... O QUE ME PARECE É QUE NÃO EXISTEM MAIS "MOTIVOS" OU SERIA MOTIVAÇÃO APARA A PRODUÇÃO DE MÚSICA, POESIA, ARTE ENFIM, QUE SEJA DE BOA QUALIDADE! MAS É PRECISO TAMBÉM ABRIR OS OUVIDOS... TEM MUITA COISA BOA ACONTECENDO!

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    2. CONCORDO PLENAMENTE COM VC... O QUE ME PARECE É QUE NÃO EXISTEM MAIS "MOTIVOS" OU SERIA MOTIVAÇÃO APARA A PRODUÇÃO DE MÚSICA, POESIA, ARTE ENFIM, QUE SEJA DE BOA QUALIDADE! MAS É PRECISO TAMBÉM ABRIR OS OUVIDOS... TEM MUITA COISA BOA ACONTECENDO!

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  2. Amo essa apresentação da Gal! Black Power total! Durante o exílio de Gil e Caetano, foi ela quem segurou por aqui a bandeira tropicalista. Bethânia, sempre avessa a movimentos e rótulos, embora não fizesse parte oficialmente da Tropicália, contribuiu indiretamente segundo o Mano Caetano. Vlw, querido. Abraços.

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  3. Excelente visão, Vivian.
    Mas também se reflete muito no interesse da sociedade. Da consciência da mesma. Acredito que não esteja mais interessada em outro tipo de música que não sejam Luans Santanas e demais fabriquetes da vida...
    Um beijo

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  4. Meu Deus! Simplesmente sou maluco por Gal Costa, já postei sobre ela no meu blog. Sem falar que essa música é uma das que mais gosto de Caetano, e gosto de quase tudo dele. Parabéns pelo texto, muito bom, digno de resenha de disco.
    Quero aproveitar e lhe convidar para visitar meu blog sabor da letra e participar do SORTEIO de um livro, que acho que você vai gostar.

    Volterei aqui mais vezes. Gosto demais desse espaço!

    http://www.sabordaletra.blogspot.com/

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  5. Concordo, Thiago. Justamente porque num tempo em que tudo pode ser dito livremente, em que absolutamente tudo é permitido, não há mais contra o que se rebelar. E assim, o que faz sucesso é a superficialidade, que por alguns momentos afasta as pessoas dos seus problemas cotidianos.

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  6. Vivian e Thiago: corroboro em termos.

    Teoricamente, vivemos num país livre, sem censura. Mas só teoricamente. Acho que existe um "zunzunzun" politicamente correto ecoando pelos quatro cantos da país. Todos estão preocupados em ser (ou parecer) bonzinhos, legais, corretos.

    Isso, evidentemente, se reflete na arte. O que é absorvido pela grande massa é o gratuito, o óbvio, o superficial. Estamos criando uma geração de preguiçosos mentais.

    Honestamente, não acho que o país tenha mudado tanto assim. As maracutaias continuam rolando. É só prestar um pouquinho mais de atenção aos telejornais. Os políticos continuam aprontando.

    Mas tudo é maquiado, disfarçado. E a juventude, que hoje tem o poder do voto, simplesmente ignora isso. Tanto é [opinião, tá?] que Dilma Roussef foi eleita.

    As produções artísticas dos anos de chumbo eram essa coisa gloriosa, pertinente, porque os jovens estavam preocupados com a situação política/social/whatever do país. Hoje, estamos todos cercados por alienados. E porque não dizer? Burros.

    Falta leitura, profundidade. Ninguém mais conhece (ou procura conhecer) nada neste país. Quem se destaca intelectualmente logo fica deslocado. O que interessa é a frivolidade. E enquanto esse panorama não mudar, os Luans Santanas vão continuar se estabelecendo.

    Mas, enfim. Me inflamei tanto que acabei esquecendo de comentar o post. Achei bárbara essa apresentação da Gal. Visceral!

    Conhecia a música, inclusive a interpretação dela, mas não tinha visto o vídeo ainda. Sou power-fã do movimento Tropicália.

    Show!

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  7. Eddy, concordo em gênero, número e grau com tudo o que disseste. Sou professora de Ensino Médio e convivo diariamente com a alienação dos jovens. ;)

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  8. Não há mesmo inspiração quando não se há dor, sofrimento, rejeição ou repressão. Aquilo que nos bate mais forte acontece justamente quando vem como um alívio ao nosso sofrimento. Acho que na música funciona assim. Além da repressão inspirar mais os artistas, dá ao público a dose de esperança e consolo que ele precisa, como se estivessem dando o grito de liberdade que eles precisavam ouvir e gritar juntos.
    Mas , por outro lado, acho que ainda hoje é possível que um artista possa se expressar e contagiar o público sem ser através de letras que falam de política e liberdade como ocorreu na Tropicália. Isso ocorreu nos anos 80 e 90 através da geração pop rock, com bandas que tiveram um trabalho tão significativo quanto o feito pela Tropicália (eu acho).
    Acho, por exemplo, que uma bela canção de amor bem feita é tão significativa e importante quanto uma canção de protesto (Taí Faz Parte do Meu Show que não me deixa mentir). O próprio Caetano fez uma linda canção de protesto às canções de amor, mas que ao mesmo tempo é, acima de tudo, uma grande canção de amor.

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  9. preciso atualizar a leitura aqui no Entulho. Pelo visto a discussão é boa.

    Vim te dizer que há uma resposta pra você no blogue do Antonio. Veja.

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  10. THiago

    Como eu imaginava, interessantíssimo o debate aqui. Li a crônica e os comentários, parabenizo os teus leitores e a você também, mais uma vez.

    Acrescentarei agora o meu ponto de vista.

    Diversas vezes já se ouviu dizer que compositores como Chico Buarque, por exemplo, foram de certa "beneficiados" pela censura. Afirmam que o Chico se superou ao lançar mão de figuras de linguagem, tornando cada vez mais rica porque metafórica a sua obra, devido ao fato de que precisava driblar a censura.

    Na minha opinião, isso não é totalmente verdade. Desafios auto-impostos certamente o levariam a criar pérolas até mais preciosas dos que as que foram geradas pela opressão e o medo, a asfixia.

    O proprio Chico, que estou usando aqui como exemplo, já declarou que sofreu muito com os vetos e que não se considera, de maneira alguma, um beneficiário da ditadura.

    Mas é claro que os desafios levam a extrapolação da criatividade. O compositor Tim Maia dizia que compunha melhor quando estava "na fossa". Ele obviamente, não desejava o sofrimento (pelo menos não de maneira consciente), mas conseguia ir mais fundo quando se desiludia amorosamente, por exemplo. "Me dê motivo" e eu farei, a lógica é mais ou menos esta em termos de criação artística.

    Falta aos artistas hoje motivação, então?

    Na verdade não. Afinal, como assinalado, o país continua enfrentando problemas políticos e sociais, razão de sobra até pra se ter angustia e, (o que é comum) através da arte, se manifestar. Além disso, claro, questões de fórum íntimo continuam a inquietar o ser humano. Mas por que não vemos isso hoje se converter em arte? Por que isso não vem à tona como aquela explosão da Gal nos anos de chumbo?

    Considero que ocorreu de lá pra cá um agravamento das questões sócio-econômicas que interferiram seriamente na produção cultural.

    A popularização dos meios de comunicação após o plano real e (no que diz respeito ao mercado fonográfico) a pirataria foram duros golpes. A Internet interferiu também, sob certo aspecto, de maneira negativa. Hoje qualquer um idiota é celebridade e não há espaço para os que de fato são célebres na mídia.

    Ocorreuo que eu chamo de um esvaziamento da cena artística. Vários de nossos ídolos desaceleraram a produção e/ou perderam a visibilidade. Muitos deles se renderam e não ocorreu uma renovação do quadro, pelo menos não na mesma proporção das perdas sofridas.

    Além disso agora se institui uma outra forma de censura que é bem pior do que a que havia, porque é velada. A escritora Maria Adelaide Amaral em entrevista recente afirmou coisa semelhante, referindo-se aos desafios da teledramaturgia na atualidade. Uma novela, por exemplo, tem que agradar a gregos e troianos. Bem entendido: público e patrocinadores. Aí não há trama que sobreviva...

    Concordo plenamente com o Eddy Fernandes que disse que algumas posturas "politicamente corretas" (além do que eu destaco: interesses econômicos e truculência disfarçada) estão calando a voz dos nossos artistas. "É preciso estar atento e forte"

    Pergunto aos teus leitores e você mesmo, THiago: quais seriam as saídas?

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  11. Muito boa a tua análise, Marcio. Só não sei se concordo com o termo "esvaziamento" da cena artística. Entendo que você se refere a ARTE e não à explosão de bobagens que se deu depois que o acesso a meios de comunicação se tornou fácil a um número muito grande de pessoas.Porém, não temos como saber o que será considerado ARTE daqui a algum tempo. A possibilidade de publicar qualquer coisa na internet, ao mesmo tempo que abre caminhos, complica muito as coisas, uma vez que fica difícil separar o que é arte e o que não é. E quem decide isso? Só o tempo dirá.

    A censura velada existe e é um reflexo de uma sociedade que tornou-se dependente de patrocinadores e afins. Difícil lutar contra isso. No entando, isso não impede o nascimento de artistas verdadeiros.

    Quando peno nos nomes da música brasileira atual, me vem a mente nomes como Marcelo Camelo, Maria Gadú, Zeca Baleiro, entre outros. São compositores jovens e que conseguem, cada um à sua maneira, compartilhar a poesia de um mundo aparentemente desprovido dela.

    Os mestres consagrados da nossa música não estão de todo calados. Caetano jamais deixou de buscar novas maneiras de se expressar. Chico tornou-se, além de compositor genial, um grande nome da literatura brasileira contemporânea.

    Enfim... é difícil responder a sua pergunta. Mas é um exercício interessante pensar e discutir a respeito.

    Abraço!

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  12. insisto em "esvaziamento", Vivian, porque aponta em duas direções: "não está mais cheio", mas ainda "não está vazio".

    Arte é expressão, de todo modo, mesmo que expresse a ignorância. O problema é quando a ignorância se generaliza...

    Podemos conter!

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  13. Parece que estamos diante do problema do meio copo d´água: meio cheio ou meio vazio? Esvaziamento (declínio da produção artística de qualidade) X entupimento (supervalorização de expressões da ignorância) da cena artística.

    Faz sentido!

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  14. Marcio, Eddy, Vivian, Gui e todos os demais


    Muito bom o debate nesse topico. Minha resposta, Marcio, virá em um futuro post sobre o tema, incitado graças a sua preciosa contribuição aqui.

    Obrigado pelas excelentes visões, pessoal!

    TH

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  15. Vivian, THiago

    Vocês me achariam louco se eu dissesse que eu amo vocês?

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  16. "A poesia reácionária da tropicália",Será?

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