terça-feira, 11 de janeiro de 2011

SOM SOBRE TOM


"Abro a janela, e em minha paróquia não visitada por sabiás, um sabiá está cantando. O ouvido não se enganou, e é fácil de explicar. Nesta manhã, um sabiá múltiplo e comemorativo gorjeia em cada árvore de cada bairro do Rio, da Tijuca ao Leblon, pela chegada dos cinquenta anos do sabiá-mor, vulgo Tom Jobim.
O pássaro desenvolve um canto geral, em nome das aves amadas por Tom, inclusive o matita-perê, que não nasceu lá muito melodioso, e o jereba, ou urubu de cabeça vermelha, do qual obviamente não se exigem primores vocais. E sua ária festiva é justa homenagem da natureza ao compositor que soube captar para nós, entre canções de amor sofrido ou exultante, a palpitação, o lirismo surdo, o secreto recado das águas de março, das madeiras e lejes que compõem o mais antigo cenário de vida. Cenário que vamos destruindo metodicamente, em vez de preservá-lo e restaurá-lo como opção para o triste viver urbano a que nos condenamos por inclinação suicida.
Porque Tom é isso aí: o vibrátil rapaz da cidade, que leva para Ipanema e Leblon uma alma ressoante de rumores da floresta, perto da qual ele nasceu. Se ama o papo no bar, com amigos ("a cerveja locupleta os vazios da alma", diz ele), será por invencível delicadeza, que ainda agora o fez declarar a Cristina Lira: "Eu só tenho feito gostar das pessoas". E reconhecendo que "as conversas de bar procuram o longo caminho do equívoco", um dia propôs a um amigo distante "estabelecer sesmarias aéreas" de sociedade com ele. Tom sabe voar sobre miudezas e convencionalismos que atrapalham a verdadeira comunicação, sob aparência de estimulá-la.
Se vai aos Estados Unidos, para gravar sua música em nível técnico mais apurado, até nisto segue política de pássaro, que emigra na hora sazonal e volta religiosamente ao habitat na hora certa. E ao voltar, continua tão brasileiro quanto era ao sair, que isso é raiz e sobrenome dele: Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, nos papéis civis. De resto, incriminá-lo de americanização, a mim parece inverter o sentido das coisas. Tom leva para a América do Norte uma límpida, sensível imagem brasileira, que lá nos faz menos desconhecidos e até amados por quem distingue, através da música, o temperamento nacional de que ela resulta. (Exportação cultural, que corresponde ao nosso interesse econômico.)
Esse generoso, espontaneo ser urbano-silvestre que é o maestro Jobim representa muita coisa mais do que uma sensibilidade pequeno-burguesa que modula crônicas de amor para consumo da classe média, a que logo adere uma suposta classe alta. É antes um criador musical que concentra o espírito do Brasil antigo, situando-o na atualidade sob condições novas. Estabelece uma continuidade emocional em formas tão cristalinas que sentimos, graças ao seu talento, a novidade dos estados permanentes de alegria, tristeza e cisma, vividos pela nossa gente, à margem de estilos e modas. Um Nazaré e um Tom dispensam colocação didática na história da música brasileira. E em Tom esse sentir brasileiro é também um sentir dos ventos, das ramagens, dos seixos, das vozes de passarinhos, que não são cariocas nem fluminenses, é a "geologia moral" do Brasil, que procuramos esquecer mas subsiste como explicação maior da gente.
Tom Jobim, deputado eleito pelos sabiás, canários e curiós para falar, não aos povos da Zona Sul, mas a toda criatura capaz de ouvir e de entender pássaros, trazendo-nos uma interpretação melódica da vida. Isso que ele faz tão bem, cativando a todos. Ou a quase todos, pois seria vão esperar que os amantes do barulho erguido à categoria de música estimassem o antibarulho, o refinamento do som organizado em fonte de prazer estético e explicação do homem por si mesmo. O som de Tom, o som que uma fada (iara, sereia, camena?) lhe deu há 50 anos, presente das matas da Tijuca ao futuro morador do Leblon, ao mais despreocupado dos mestres, e por isso também o mestre que é mais agradável reverenciar.

Salve, Tom, em claro e meigo Tom!"


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


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Quem acompanha o trabalho do EnTHulho Musical, sabe que pouquíssimo recorro a textos de internet pra compor as postagens do blog. No máximo, utilizo informações de sites oficiais dos artistas nos tópicos de biografia do artista do mês, ou textos de amigos na seção "Amigo Musical Convidado". Ocorre que, ao coletar material pra escrever alguma coisa sobre nosso artista do mês, Tom Jobim, deparei-me com esse espetacular texto de outro ídolo meu, o Drummond. Exatamente tudo o que eu penso sobre Tom está aí. Como Drummond é do mundo e certamente adoraria homenagear o amigo, acredito que não obstaria em dispor seu texto aqui. Fecho o post, pois, musicando. Já lhe disseram que ler com música ao fundo é um prazer quase orgásmico?


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DESAFINADO
Tom Jobim
Interpretação: Joao Gilberto e Tom Jobim

Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vêm a mesma queixa
Diz que eu desafino, que eu não sei cantar
Você é tão bonita, mas tua beleza também pode se enganar

Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural

O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão

Só não poderá falar assim do meu amor
Este é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
Que no peito dos desafinados também bate um coração



TH - Oportuno...




6 comentários:

  1. Drummond é o cara, TH! Nem sabia que era amigo do Tom

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  2. Oi, TH! Fazia um tempinho q eu não passava por aqui (tava de ressaca emocional...rsrsrs). Li todas as postagens do Ney, achei sensacional e agora vou acompanhar as do Tom, um dos maiores poetas da nossa mpb. Teu blog continua arrebentando. Bjo.
    Ah...obrigada pelos recados carinhosos durante a minha ressaca, são coisas assim q nos fazem levantar.

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  3. Putz saiu no post errado ...

    Replay!

    Tom sob o olhar e as letras de Drummond é covardia ... não dá para comentar ...

    bjux

    ;-)

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  4. Verdade querido cada um tem o espaço que necessita ter, o meu bloguinho, vai bem, sem muito alarde, do meu jeito, sem grandes pretensões. Que bom que vc ainda o visita!

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  5. Olá amigo!
    Lindo o seu blog, gostei do que ele contem e de sua forma, lido esta parte musical.
    Um beijão.

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  6. Obrigado pelos comentários pessoal...

    José Sousa, seja bem vindo! Vejo que gostas de musica brasileira...volte sempre aqui.

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